Introdução: Quando o Pioneiro Perde o Controle do Mercado (estratégia competitiva farmacêutica)

No universo dinâmico e altamente competitivo da indústria farmacêutica, poucas histórias ilustram tão claramente os desafios da estratégia competitiva farmacêutica quanto o caso da Novo Nordisk e seu medicamento Ozempic. Em 2023, a empresa dinamarquesa ocupava o posto de mais valiosa da Europa, impulsionada pela crescente demanda por seus medicamentos antiobesidade. Contudo, em menos de dois anos, a companhia viu sua posição de liderança ser sistematicamente corroída por erros estratégicos fundamentais que transformaram uma vantagem competitiva sólida em uma lição de como não gerenciar um mercado emergente.

Este caso representa, portanto, um laboratório perfeito para analisarmos conceitos fundamentais de marketing e branding aplicados ao setor farmacêutico. Além disso, oferece insights valiosos sobre gestão de marca, posicionamento estratégico e as complexidades inerentes à manutenção de vantagem competitiva em mercados de alta inovação. Consequentemente, examinaremos como teorias clássicas de estratégia empresarial se manifestam na prática, revelando tanto os acertos quanto os equívocos que definiram este emblemático confronto corporativo.

A análise que se segue, dessa forma, não apenas disseca os elementos que levaram à perda de controle de mercado da Novo Nordisk, mas também extrai lições aplicáveis a qualquer organização que busque construir e manter posições competitivas sustentáveis em ambientes de rápida transformação.

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A Teoria da Vantagem do Primeiro Entrante: Fundamentos e Aplicações

Para compreendermos adequadamente o caso Ozempic, é fundamental revisitarmos os conceitos teóricos que sustentam a vantagem do primeiro entrante, ou first-mover advantage, conforme estabelecido por Michael Porter em suas obras seminais sobre estratégia competitiva. Em “Estratégia Competitiva” (1980) ACESSE OBRA AQUI, Porter argumenta que empresas pioneiras em novos mercados podem estabelecer barreiras significativas à entrada de concorrentes, criando vantagens duradouras através do controle de recursos escassos, estabelecimento de padrões tecnológicos e construção de relacionamentos privilegiados com clientes [1].

Estratégia competitiva farmacêutica da Novo Nordisk

No contexto farmacêutico, essa vantagem se manifesta de forma particularmente pronunciada devido às características únicas do setor. Primeiramente, os altos custos de pesquisa e desenvolvimento criam barreiras naturais à entrada. Além disso, o processo regulatório complexo e demorado oferece janelas de oportunidade para que pioneiros estabeleçam posições de mercado antes da chegada de concorrentes. Por conseguinte, quando a Novo Nordisk lançou o Ozempic para diabetes e posteriormente o Wegovy para obesidade, a empresa parecia estar em posição ideal para capitalizar essas vantagens estruturais.

Entretanto, como observa Al Ries em “Marketing de Guerra” (1986) ACESSE OBRA AQUI , a vantagem do pioneiro não é automaticamente sustentável. Segundo Ries, “ser o primeiro não garante vitória; é preciso defender constantemente a posição conquistada” [2]. Esta observação se mostra profética quando analisamos a trajetória da Novo Nordisk, que, apesar de ter criado efetivamente o mercado de medicamentos GLP-1 para obesidade, falhou em implementar estratégias defensivas adequadas para manter sua posição dominante.

A teoria de Porter sobre as cinco forças competitivas também oferece uma lente valiosa para analisarmos este caso. A força dos “novos entrantes” se materializou através da Eli Lilly, que conseguiu não apenas entrar no mercado, mas superá-lo em eficácia terapêutica e agilidade estratégica. Simultaneamente, a força dos “produtos substitutos” emergiu através das farmácias de manipulação e empresas de telemedicina, que capitalizaram a escassez de oferta para criar alternativas de menor custo.

Gestão de Marca e Posicionamento Estratégico: O Dilema da Novo Nordisk

A gestão de marca no setor farmacêutico apresenta desafios únicos que transcendem as práticas convencionais de marketing. Como Philip Kotler observa em “Administração de Marketing” (2019) ACESSE OBRA AQUI, “o posicionamento eficaz requer não apenas identificar um espaço mental distintivo, mas também defendê-lo consistentemente através de todas as interações com o mercado” [3]. No caso da Novo Nordisk, observamos uma desconexão fundamental entre o posicionamento aspiracional da marca e sua execução operacional.

A empresa havia construído sua identidade corporativa em torno de valores humanísticos, enfatizando o compromisso com o “bem comum” acima do lucro puro. Este posicionamento, embora nobre, criou tensões internas significativas quando confrontado com as realidades competitivas do mercado antiobesidade. Conforme relatado no artigo do Wall Street Journal, existe um “eterno cabo de guerra dentro da empresa entre aqueles que são guiados por valores e aqueles que administram o negócio” [4].

Quando a estratégia competitiva farmacêutica acaba

Esta tensão se manifesta claramente na abordagem conservadora da empresa em relação à expansão de capacidade produtiva. Enquanto a demanda pelo Wegovy explodia, superando em cinco semanas o que o produto anterior (Saxenda) havia alcançado em cinco anos, a Novo Nordisk manteve uma postura cautelosa, baseando seu planejamento em experiências passadas que se mostraram inadequadas para o novo contexto de mercado.

Al Ries e Jack Trout, em “Posicionamento: A Batalha por sua Mente” (1981) ACESSE AQUI), alertam para os perigos de empresas que “tentam ser tudo para todos, acabando por não ser nada para ninguém” [5]. A Novo Nordisk parece ter caído nesta armadilha ao tentar equilibrar seus valores corporativos com as demandas agressivas de um mercado em rápida expansão. Consequentemente, a empresa perdeu oportunidades críticas de consolidar sua posição dominante quando tinha vantagem temporal sobre os concorrentes.

O contraste com a abordagem da Eli Lilly é particularmente revelador. A empresa americana demonstrou maior agilidade estratégica, não apenas no desenvolvimento de um produto superior (Zepbound, com mais de 20% de perda de peso versus Wegovy), mas também na implementação de estratégias de marketing direto ao consumidor. A Lilly foi pioneira em serviços online de venda direta e parcerias com empresas de telemedicina, movimentos que a Novo Nordisk só replicou meses depois, perdendo vantagem competitiva crucial.

Framework de Análise: As Cinco Forças de Porter Aplicadas ao Mercado Antiobesidade

Para compreendermos completamente a dinâmica competitiva que levou à perda de posição da Novo Nordisk, aplicaremos o framework das Cinco Forças de Porter ao mercado de medicamentos antiobesidade:

1. Rivalidade entre Concorrentes Existentes

A intensidade da rivalidade aumentou dramaticamente com a entrada da Eli Lilly. Inicialmente, a Novo Nordisk desfrutava de uma posição quase monopolística, mas a chegada do Mounjaro e posteriormente do Zepbound transformou o mercado em um duopólio altamente competitivo. A superioridade clínica demonstrada pelo Zepbound (>20% de perda de peso) versus Wegovy criou uma diferenciação tangível que deslocou a competição do preço para a eficácia. E a partir daqui mudou-se a fotografia do mercado e a estratégia competitiva farmacêutica.

2. Ameaça de Novos Entrantes

As barreiras de entrada no setor farmacêutico são tradicionalmente altas devido aos custos de P&D e requisitos regulatórios. Contudo, a escassez criada pela Novo Nordisk abriu brechas inesperadas. Farmácias de manipulação obtiveram autorização legal para produzir versões compostas do semaglutida, criando uma categoria de “novos entrantes” que contornou as barreiras tradicionais.

3. Poder de Barganha dos Fornecedores

A dependência da Novo Nordisk de fornecedores externos para capacidade de produção se tornou um ponto de vulnerabilidade crítico. A aquisição da Catalent por US$ 16 bilhões representa uma tentativa tardia de internalizar esta capacidade, mas demonstra como a empresa subestimou a importância do controle da cadeia de suprimentos.

4. Poder de Barganha dos Compradores

O mercado antiobesidade apresenta características únicas de demanda. Diferentemente de medicamentos para condições agudas, os tratamentos para obesidade enfrentam resistência de seguradoras e planos de saúde. Isso criou oportunidades para modelos de venda direta, onde a Eli Lilly demonstrou maior agilidade estratégica.

5. Ameaça de Produtos Substitutos

A escassez de Wegovy catalisou o surgimento de substitutos inesperados. Empresas de telemedicina começaram a oferecer versões compostas a preços significativamente menores, criando uma categoria de substitutos que não existia anteriormente no mercado.

Estudos de Caso Comparativos: Lições de Outros Pioneiros que Perderam Mercado

O caso Ozempic não é isolado na história empresarial. Como mencionado no artigo original, empresas como Sunshine Biscuits (Hydrox vs Oreos) e MySpace (vs Facebook) também desperdiçaram vantagens de primeiro entrante. Estes paralelos oferecem insights valiosos sobre padrões recorrentes de falhas estratégicas.

Caso Hydrox vs Oreos: A Importância do Marketing de Massa

A Sunshine Biscuits lançou os biscoitos Hydrox em 1908, quatro anos antes dos Oreos da Nabisco. Contudo, a Nabisco investiu massivamente em marketing de massa e distribuição, eventualmente tornando “Oreo” sinônimo de biscoito recheado. Como observa Americus Reed, professor de marketing da Wharton School, “quem vem a seguir está vendo os erros do até então líder. O retardatário pode identificá-los e não cometer esses mesmos erros” [6].

Caso MySpace vs Facebook: Agilidade Estratégica e Foco

O MySpace dominou as redes sociais entre 2005-2008, mas perdeu posição para o Facebook devido à falta de foco estratégico e lentidão na inovação. Similarmente, a Novo Nordisk demonstrou rigidez estratégica ao manter abordagens conservadoras em um mercado que demandava agilidade e agressividade.

Recomendações Estratégicas: Lições para Gestão de Vantagem Competitiva

Com base na análise do caso Ozempic e nos frameworks teóricos aplicados, emergem cinco recomendações estratégicas fundamentais para empresas que buscam manter vantagens competitivas em mercados emergentes:

1. Planejamento de Cenários Dinâmico

Empresas pioneiras devem desenvolver capacidade de planejamento que transcenda experiências históricas. A Novo Nordisk baseou suas projeções no desempenho do Saxenda, ignorando sinais de que o Wegovy operava em um contexto de mercado fundamentalmente diferente. Recomenda-se implementar metodologias de planejamento de cenários que considerem potenciais disrupções e crescimento exponencial.

2. Integração Vertical Estratégica

O controle da cadeia de suprimentos emerge como fator crítico de vantagem competitiva. A dependência de fornecedores externos criou vulnerabilidades que a concorrência explorou efetivamente. Empresas devem avaliar sistematicamente quais elementos da cadeia de valor são críticos para manutenção de vantagem competitiva e considerar integração vertical seletiva.

3. Agilidade em Marketing Direto ao Consumidor

O setor farmacêutico está passando por transformação fundamental na relação com consumidores finais. A Eli Lilly demonstrou superioridade ao implementar rapidamente canais diretos e parcerias com telemedicina. Empresas tradicionais devem desenvolver capacidades de marketing digital e vendas diretas para não depender exclusivamente de canais tradicionais.

4. Gestão Proativa de Demanda

Limitar demanda de produtos inovadores representa erro estratégico fundamental. Em vez de racionar oferta, empresas devem investir agressivamente em expansão de capacidade quando identificam demanda superior às projeções. O custo de oportunidade de demanda não atendida frequentemente supera os riscos de sobrecapacidade temporária.

5. Alinhamento Cultural e Estratégico

A tensão entre valores corporativos e imperativos competitivos deve ser resolvida através de alinhamento cultural claro. Empresas precisam definir como seus valores se traduzem em vantagem competitiva, evitando que princípios nobres se tornem obstáculos à execução estratégica eficaz.

Conclusão: Transformando Lições em Vantagem Competitiva Sustentável

O caso Ozempic oferece uma masterclass sobre como vantagens competitivas aparentemente sólidas podem ser rapidamente corroídas por falhas estratégicas fundamentais. A estratégia competitiva farmacêutica da Novo Nordisk, inicialmente bem-sucedida na criação de um novo mercado, falhou na fase crítica de defesa e consolidação de posição.

As lições extraídas transcendem o setor farmacêutico, oferecendo insights valiosos para qualquer organização que busque construir e manter vantagens competitivas sustentáveis. Primeiramente, a importância de alinhar capacidades operacionais com ambições estratégicas. Além disso, a necessidade de equilibrar valores corporativos com imperativos competitivos. Por fim, a criticidade de manter agilidade estratégica mesmo quando se ocupa posição de liderança.

Como Philip Kotler observa, “o marketing não é apenas sobre conquistar clientes, mas sobre mantê-los através de valor superior consistente” [7]. A Novo Nordisk criou valor inicial significativo, mas falhou em sustentar esta proposição diante de pressões competitivas crescentes. Consequentemente, a empresa se junta à lista de pioneiros que, apesar de criar mercados inteiros, não conseguiram manter o controle sobre suas próprias criações.

Para profissionais de marketing e estratégia, portanto, este caso reforça a importância de vigilância competitiva constante, investimento contínuo em capacidades distintivas e, sobretudo, a humildade de reconhecer que vantagens competitivas são construções temporárias que requerem renovação e defesa permanentes.

Referências

[1] Porter, M. E. (1980). Estratégia Competitiva: Técnicas para Análise de Indústrias e da Concorrência. Rio de Janeiro: Elsevier.

[2] Ries, A. (1986). Marketing de Guerra. São Paulo: McGraw-Hill.

[3] Kotler, P., & Keller, K. L. (2019). Administração de Marketing (15ª ed.). São Paulo: Pearson.

[4] The Wall Street Journal. (2025). Como o fabricante do Ozempic perdeu o controle do mercado de combate à obesidade… que ele mesmo criou. InvestNews. Disponível em: https://investnews.com.br/the-wall-street-journal/ozempic-perdeu-o-controle-do-mercado/amp/

[5] Ries, A., & Trout, J. (1981). Posicionamento: A Batalha por sua Mente. São Paulo: Pioneira.

[6] Reed, A. (2025). Citado em: The Wall Street Journal. Como o fabricante do Ozempic perdeu o controle do mercado de combate à obesidade… que ele mesmo criou.

[7] Kotler, P. (2017). Marketing 4.0: Do Tradicional ao Digital. Rio de Janeiro: Sextante.


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